sábado, 5 de janeiro de 2013

ENTREVISTA ARON FELDMAN






Essa entrevista aconteceu em 1989 quando eu tinha 17 anos, logo após mudar para Belo Horizonte para estudar comunicação social e não pensava ainda realizar filmes. Desde a minha adolescência em Virginópolis, interior de Minas Gerais, já editava um fanzine onde comentava fatos do cotidiano e perfis de pessoas que se destacavam por suas atividades ou pelo modo de ser chamado:  A voz do estudante. Mudando para Belo Horizonte continuei com o hábito e passei o editar o fanzine que se chamava: Underground. Em 1993 me formei em relações Públicas e nessa época tinha como orientadora de conclusão de curso a cineasta Patrícia Moran, o que me aguçou para a carreira cinematográfica.

Por essa conjunção de fatores, esta entrevista contém as imperfeições e ingenuidades inerentes à idade e ao parco conhecimento, principalmente cinematográfico, até então. Por uma coincidência do destino, após a morte de Aron, eu fui morar no mesmo apartamento onde ele residiu, em Belo Horizonte. Era o ano de 1993 e eu dividia a moradia com alguns integrantes da banda Virna Lisi.

Considero precioso este material por trazer às novas gerações a memória do artista e a possibilidade de descoberta de filmes pouco vistos e ainda desconhecidos por elas.



VIAGEM CINEMATOGRÁFICA
Por Sávio Leite – Fanzine Underground – 1989
Entrevista com Aron Feldman

Como nasceu essa paixão pelo cinema?
Eu nasci no Rio Grande do Sul. Vieram imigrantes de toda parte, espanhóis, portugueses. Hoje mesmo, vendo um programa sobre os índios, percebi que eles são os únicos habitantes legítimos. Eles me perguntam: “O senhor é estrangeiro?”. – “Não, eu não sou estrangeiro, sou do Rio Grande do Sul, mas vim de imigração”. Eu falo meio arrastado porque meu pai veio da Rússia ainda mocinho com a família. Minha mãe também veio de lá, com oito anos de idade, só com o primário, porém de outra família; era um lugar bem pequeno. E, como tradição, quem casava ganhava um pedaço de terra, com tudo para constituir família. Usávamos lampião, tirávamos leite da vaca etc. E um dia, com dor de cabeça, deitei no chão da minha casa, que era feito de madeiras com muitos furos. Deitado, comecei a observar minha mãe no quintal e, quando ela passava perto da casa, sua imagem se refletia na parede. E eu desconhecia a fotografia, o cinema. Resolvi inventar a máquina fotográfica com uma caixa de sapato. Com um furo eu via as imagens invertidas. Mas...como registrar as imagens? Eu desconhecia o mundo! Passei a desenhar, então, o que eu via. Isso queria dizer que eu já tinha uma intuição para a imagem.



E como meu pai vivia da agricultura, a vida era dura. Plantações perdidas com chuvas de gafanhotos e até a revolução (1930) que comia os bois do meu pai. Estão devendo ate hoje; como o BNH, você vive a vida inteira pagando. E saímos de lá, fomos para Bauru, onde houve muitas exposições e cheguei a competir com os melhores fotógrafos do mundo. Ali desenvolvi minhas qualidades de autodidata, pois não havia escolas. Ali me elogiaram na festa de aniversario da Faculdade de Comunicação com o ciclo dos meus filmes. Daí mudamos para São Paulo, ou melhor, Santo André, onde me tornei profissional. Montei uma firma de produções. Comecei a filmar casamentos, aniversários. Mas paralelo a esse cinema de sobrevivência, comecei a usar minha imaginação para fazer filmes para as outras pessoas. E, quando há um respaldo do público, é muito gostoso. Mas o negócio é por ai....



Como foi sua participação no Cinema Novo?
Minha participação no cinema novo foi constante, pois faço cinema que fala da realidade, ou seja, discriminação, repressão, desemprego, em suma, todos os problemas que houve durante e ditadura militar, denunciei sempre nos meus filmes. Então minha participação foi constante.

Por que seus filmes não são exibidos em circuito comercial? Cinema independente dá pé?
Eu não me sujeito a fazer filmes comerciais, não me sujeito a produtores, porque a minha cabeça não combina com a deles. Teve um produtor que queria fazer um filme comigo e, na hora H, quis fazer do modo dele. Começou a deturpar, a vulgarizar. Então não dá. Cinema independente você tem a liberdade de criar, de fazer o que quer, ninguém impõe. Pois não interessa Ibope. Minha intenção de cineasta independente é que eu possa criar com liberdade. Financeiramente, não interessa. Preocupo-me em denunciar as ideias da gente. Cada um usa a arma que tem. O escritor usa a palavra, o músico, a música. Eu, através da imagem, tento denunciar e questionar as coisas.




Fale-nos da produção cultural da década de 60. O seu envolvimento com outros cineastas – Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Cacá Diegues, Paulo César Sarraceni...
Eu sou um dos cineastas, um dos poucos, talvez o único, que tenho contato direto com o público. Porque ninguém conheceu Glauber Rocha, ninguém soube como ele era. Leon Hirzman, o público o desconhece, porque ele não participa. Coisa que acontece com o teatro. O calor humano vem na hora. Geralmente o cineasta não vê a participação do seu público. Eu participo juntamente com o meu público. Outro dia me perguntaram se eu já fiz um filme sobre a ditadura. A minha filmografia quase toda feita durante os 30 anos de ditadura militar. Tive alguns filmes proibidos pela censura. Pois através das imagens eu denunciava, os personagens ridicularizavam quem estava no poder. Tiravam um sarro da ditadura. É claro que eles têm o poder de nos boicotar, mas acho que eles não chegariam a nos prender, porque castrando o filme, a gente está castrado do meu jeito. E eles não seriam tão idiotas de prender um cineasta.
Eu morava em Santo André, e lá tinha a AUSA ( Associação Universitária de Santo André), que tinha um espaço cultural, como a sala Humberto Mauro. Exibíamos filmes. E eu também fazia e dirigia teatro dentro do Sindicato dos Metalúrgicos. Ali os estudantes ensaiavam etc. Cheguei a levar a peca “Eles não usam Black-tie” , de Gianfrancesco Guarnieri que virou até filme Leon Hirzman. Curioso este fato, porque eu levei dia 28 de março e dia 31 estourou a revolução.

Quais as temáticas dos seus filmes?
Por exemplo, em “Finito e Infinito”, falo sobre a ameaça de uma catástrofe nuclear, o que sai um pouco da realidade brasileira. Foi feito com atores mineiros. Nos demais filmes, mostro a nossa realidade, o desemprego, a discriminação da mulher e do trabalhador, repressão... Só filmes de denúncias. Denunciam as pressões que tiveram durante a ditadura.

Qual dos filmes, em sua opinião, é o melhor?
Gostar, eu gosto de todos. Acho que são bem produzidos. Não são filmes modistas. São filmes para sempre. E não esses consumistas que, à medida que o tempo vai passando, caem de moda. Porque a arte não tem tempo nem espaço. Porque daqui a um tempo, quando eu não estiver mais aqui, os meus serão sempre atuais. Porque o tema desemprego é bem atual. Desemprego existirá por toda a vida, porque isso é uma coisa difícil de superar. Os americanos fizeram milhões de filmes sobre a guerra do Japão (você nem tinha nascido), mas são todos lixo, não têm valor. Os meus não são modistas. “A Febre Nossa de Cada Dia” retrata a vida de dois jovens que vivem numa cidade marcada pela insegurança, o medo, os assaltantes. São classe média, embora hoje não se saiba se essa classe ainda existe. Tem um filme que fala sobre o drama do menor abandonado, também filmado aqui em Belo Horizonte. É um fenômeno que existe em toda parte, e é difícil de ser solucionado.

Qual o recado o senhor dá para quem quer seguir os caminhos do cinema?
Eu acho que fazer cinema é muito difícil. A arte e a cultura em geral aqui no Brasil são muito difíceis. Outro dia um jornal me deu um slogan: “Aron, o cineasta teimoso”, “Aron, o cinema do milagre”. Pois para fazer cinema no Brasil precisa ser cabeçudo. É muito difícil, eu faço cinema independente, eu produzo. Às vezes deixo de comprar sapatos, camisas e junto dinheiro para comprar uma fita. É tudo por amor à arte. Já vou lançar mais um filme, “Estranhas criaturas”, de um conto do Carlos Herculano Lopes, um contista mineiro que adaptei e desenvolvi. Está pronto. Modéstia à parte, está genial, com os melhores atores de Belo Horizonte e estou aguardando o lançamento. Com esse plano Collor, que saqueou todo mundo, ninguém tem dinheiro. As empresas não têm dinheiro nem para pagar seus funcionários. E a arte então? Não tem mais a Lei Sarney, não tem mais Embrafilme... acabou tudo. Está difícil, mas acho que logo este meu novo filme será exibido (previsto para de 02 de junho de 1990, no Palácio das Artes). Não digo o último, pois enquanto estiver de pé continuarei fazendo cinema (risos).


Aron Feldman (1919-1993) é tido como um realizador dos mais influentes, mas de carreira totalmente subterrânea. Autor do polêmico “O Mundo de Anônimo Jr.” (1972), longa-metragem que integra o ciclo denominado Cinema Marginal e é considerado pelos estudiosos como um dos mais radicais dessa escola.  Feldman viu negado o seu certificado de exibição pelo Instituto Nacional do Cinema, o que impediu sua exibição nos cinemas. O filme, que satiriza simbolicamente uma época de repressão e obscurantismo, foi projetado exclusivamente em cineclubes e cinematecas, muitas vezes clandestinamente, e encontra-se há anos fora de circulação. Em texto de 1974, o crítico e historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) afirma: “O que impressiona no comportamento dos comissários governamentais é o desconhecimento que revelaram em matéria específica de cinema brasileiro e mais geralmente em torno de cultura nacional e seus diferentes matizes.” Dirigiu 11 filmes e vídeos que destacam sua versatilidade e, principalmente, sua filosofia de criação: fazer com os recursos e condições disponíveis, por mais restritos que fossem.

Filmografia
CASQUEIRO – 16mm, p/b, 16 minutos, 1966
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente: Claudio Feldman
Cooperação: José Armando Pereira da Silva
Distribuição: Dinafilmes
Sinopse: Crianças vendedoras às margens da Via Anchieta.

A FEBRE NOSSA DE CADA DIA – 16mm, p/b, 49 minutos, 1968
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente: Claudio Feldman
Roteiro: Aron e Claudio Feldman
Elenco: Cleide Dall’Ollio, Ari de Oliveira, Celsinho e Soraia, Célia Bittencourt, Oslei Delamo, Sônia Gimenes, Evaristo de Jesus e Gilberto Castilho.
Distribuição: Dinafilmes

O MUNDO DE ANÔNIMO JR. - 35mm, p/b, 90 minutos, 1972
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente e roteiro: Claudio Feldman
Músicas: Fred Zimmermann e Flávio Siqueira
Elenco: Claudio Feldman , Cila Albuquerque, Oslei Delamo , Ângela Peduto, Sônia Guedes, José Henrique de Paiva Lisboa, Carlos Rivani, Jaime da Costa Patrão
Estúdio de gravação, montagem e laboratório: Primo Carbonari
Distribuição: Dinafilmes

MANGUE E METRô - 16mm, p/b, 10 minutos, 1976 (filmado no Rio de Janeiro)
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Arte: Mirelli Lerner
Assistentes: Roberto Peckman, Abram Gotlib, Isaac Levi e Felipe Doctors
Sinopse: Acompanha a desocupação da região do Mangue carioca para a construção do metrô

JÁ NÃO SE FAZEM ALMAS COMO ANTIGAMENTE - 16mm, cor, 20 minutos, 1981
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro: Claudio Feldman
Música: Getúlio Braga
Gravação:  Adelmo Vanuchi
Abertura e desenhos: Mirelli Lerner
Cartazes: Moacir Torres
Colaboração: Claudio Feldman, Edmundo Lima e Fani Feldman
Elenco: Edson de Deus, Valdeni de Carvalho, Sergio Feldman, Neide F. Oliveira, Sergio Luiz F. Soler, Valeria Feldman e Ida Feldman.
Distribuição: Dinafilmes

O PACOTE - 16mm, p/b, 27 minutos, 1982
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Argumento: Claudio Feldman
Adaptação: Aron Feldman
Música: Elmano Nunes Jr. (Maninho)
Elenco: Wilson Damas e Gê Garcia
Distribuição: Dinafilmes
Sinopse: O filme aborda o desemprego na região do ABC paulista.

MARIANA, PARANÁ E GREVE – super 8mm, cor, 36 minutos, 1984
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Baseado no conto “Os conselhos”, de Roberto Franco
Adaptação: Aron Feldman
Elenco: Marli Aparecida Ferreira da Silva, Adélio Oliveira, Agenor Alberto Pereira Chagas, Ariel Moche, Cristine Del’acqua, Eliane Freitas Trevigno, Marlene, Geovan Sabino, Manoel de Araújo, Maria Aparecida Noberto, Maria Aparecida Viotto, Nelson Paiva, Wanderlei A. de Souza, Manoel de Araújo, Mirelli Lerner e Ida Feldman.

VOU SER LADRÃO - super 8mm, cor, 20 minutos, 1985
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Entrevistas e narração: Ida Feldman.

FINITO OU INFINITO - super 8mm, cor, 20 minutos, 1986
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro: Aron Feldman
Elenco: Helvécio Ferreira, João Augusto do Carmo, Ana Aguinala, Lana Carneiro e Nelaide Abdo.
Assistente de direção: Fabio Carvalho
Iluminação: Tárcio Martins

A ODISSEIA DE UM CADÁVER - VHS, cor, 70 minutos, 1988
Direção, produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro: Claudio Feldman
Sinopse: Um cadáver feminino é achado no mato por dois caipiras e conduzido à distante delegacia, após mil peripécias.

ESTRANHAS CRIATURAS – 1990*
Uma prostituta jovem é informada por veterana que bichinhos vorazes a estão consumindo e o mesmo poderá ocorrer com a novata quando envelhecer.

AFOGADOS – 1991*



Aron Feldman pode ser visto nesse videoclipe da banda mineira Divergencia Socialista feito pela cineasta Patrícia Moran.

*(os dois últimos filmes não foram encontrados dados quanto ao formato, duração)