Essa
entrevista aconteceu em 1989 quando eu tinha 17 anos, logo após mudar para Belo
Horizonte para estudar comunicação social e não pensava ainda realizar filmes.
Desde a minha adolescência em Virginópolis, interior de Minas Gerais, já
editava um fanzine onde comentava fatos do cotidiano e perfis de pessoas que se
destacavam por suas atividades ou pelo modo de ser chamado: A voz do estudante. Mudando para Belo
Horizonte continuei com o hábito e passei o editar o fanzine que se chamava:
Underground. Em 1993 me formei em relações Públicas e nessa época tinha como
orientadora de conclusão de curso a cineasta Patrícia Moran, o que me aguçou
para a carreira cinematográfica.
Por essa
conjunção de fatores, esta entrevista contém as imperfeições e ingenuidades
inerentes à idade e ao parco conhecimento, principalmente cinematográfico, até
então. Por uma coincidência do destino, após a morte de Aron, eu fui morar no
mesmo apartamento onde ele residiu, em Belo Horizonte. Era
o ano de 1993 e eu dividia a moradia com alguns integrantes da banda Virna
Lisi.
Considero
precioso este material por trazer às novas gerações a memória do artista e a
possibilidade de descoberta de filmes pouco vistos e ainda desconhecidos por
elas.
VIAGEM
CINEMATOGRÁFICA
Por Sávio
Leite – Fanzine Underground – 1989
Entrevista
com Aron Feldman
Como nasceu essa paixão pelo cinema?
Eu nasci no
Rio Grande do Sul. Vieram imigrantes de toda parte, espanhóis, portugueses.
Hoje mesmo, vendo um programa sobre os índios, percebi que eles são os únicos
habitantes legítimos. Eles me perguntam: “O senhor é estrangeiro?”. – “Não, eu
não sou estrangeiro, sou do Rio Grande do Sul, mas vim de imigração”. Eu falo
meio arrastado porque meu pai veio da Rússia ainda mocinho com a família. Minha
mãe também veio de lá, com oito anos de idade, só com o primário, porém de
outra família; era um lugar bem pequeno. E, como tradição, quem casava ganhava
um pedaço de terra, com tudo para constituir família. Usávamos lampião,
tirávamos leite da vaca etc. E um dia, com dor de cabeça, deitei no chão da
minha casa, que era feito de madeiras com muitos furos. Deitado, comecei a
observar minha mãe no quintal e, quando ela passava perto da casa, sua imagem
se refletia na parede. E eu desconhecia a fotografia, o cinema. Resolvi
inventar a máquina fotográfica com uma caixa de sapato. Com um furo eu via as
imagens invertidas. Mas...como registrar as imagens? Eu desconhecia o mundo!
Passei a desenhar, então, o que eu via. Isso queria dizer que eu já tinha uma intuição
para a imagem.
E como meu
pai vivia da agricultura, a vida era dura. Plantações perdidas com chuvas de
gafanhotos e até a revolução (1930) que comia os bois do meu pai. Estão devendo
ate hoje; como o BNH, você vive a vida inteira pagando. E saímos de lá, fomos
para Bauru, onde houve muitas exposições e cheguei a competir com os melhores
fotógrafos do mundo. Ali desenvolvi minhas qualidades de autodidata, pois não
havia escolas. Ali me elogiaram na festa de aniversario da Faculdade de Comunicação
com o ciclo dos meus filmes. Daí mudamos para São Paulo, ou melhor, Santo André,
onde me tornei profissional. Montei uma firma de produções. Comecei a filmar
casamentos, aniversários. Mas paralelo a esse cinema de sobrevivência, comecei
a usar minha imaginação para fazer filmes para as outras pessoas. E, quando há
um respaldo do público, é muito gostoso. Mas o negócio é por ai....
Como foi sua participação no Cinema
Novo?
Minha
participação no cinema novo foi constante, pois faço cinema que fala da
realidade, ou seja, discriminação, repressão, desemprego, em suma, todos os
problemas que houve durante e ditadura militar, denunciei sempre nos meus
filmes. Então minha participação foi constante.
Por que seus filmes não são exibidos
em circuito comercial? Cinema independente dá pé?
Eu não me
sujeito a fazer filmes comerciais, não me sujeito a produtores, porque a minha
cabeça não combina com a deles. Teve um produtor que queria fazer um filme
comigo e, na hora H, quis fazer do modo dele. Começou a deturpar, a vulgarizar.
Então não dá. Cinema independente você tem a liberdade de criar, de fazer o que
quer, ninguém impõe. Pois não interessa Ibope. Minha intenção de cineasta
independente é que eu possa criar com liberdade. Financeiramente, não
interessa. Preocupo-me em denunciar as ideias da gente. Cada um usa a arma que
tem. O escritor usa a palavra, o músico, a música. Eu, através da imagem, tento
denunciar e questionar as coisas.
Fale-nos da produção cultural da
década de 60. O seu envolvimento com outros cineastas – Glauber Rocha, Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Cacá Diegues, Paulo César Sarraceni...
Eu sou um
dos cineastas, um dos poucos, talvez o único, que tenho contato direto com o público.
Porque ninguém conheceu Glauber Rocha, ninguém soube como ele era. Leon
Hirzman, o público o desconhece, porque ele não participa. Coisa que acontece
com o teatro. O calor humano vem na hora. Geralmente o cineasta não vê a
participação do seu público. Eu participo juntamente com o meu público. Outro
dia me perguntaram se eu já fiz um filme sobre a ditadura. A minha filmografia
quase toda feita durante os 30 anos de ditadura militar. Tive alguns filmes
proibidos pela censura. Pois através das imagens eu denunciava, os personagens
ridicularizavam quem estava no poder. Tiravam um sarro da ditadura. É claro que
eles têm o poder de nos boicotar, mas acho que eles não chegariam a nos
prender, porque castrando o filme, a gente está castrado do meu jeito. E eles não seriam tão idiotas de prender um cineasta.
Eu morava em Santo André , e lá
tinha a AUSA ( Associação Universitária de Santo André), que tinha um espaço cultural,
como a sala Humberto Mauro. Exibíamos filmes. E eu também fazia e dirigia
teatro dentro do Sindicato dos Metalúrgicos. Ali os estudantes ensaiavam etc.
Cheguei a levar a peca “Eles não usam Black-tie” , de Gianfrancesco Guarnieri que virou até filme Leon
Hirzman. Curioso este fato, porque eu levei dia 28 de março e dia 31 estourou a
revolução.
Quais as temáticas dos seus filmes?
Por exemplo,
em “Finito e Infinito”, falo sobre a ameaça de uma catástrofe nuclear, o que
sai um pouco da realidade brasileira. Foi feito com atores mineiros. Nos demais
filmes, mostro a nossa realidade, o desemprego, a discriminação da mulher e do trabalhador,
repressão... Só filmes de denúncias. Denunciam as pressões que tiveram durante
a ditadura.
Qual dos filmes, em sua opinião, é o melhor?
Gostar, eu
gosto de todos. Acho que são bem produzidos. Não são filmes modistas. São
filmes para sempre. E não esses consumistas que, à medida que o tempo vai
passando, caem de moda. Porque a arte não tem tempo nem espaço. Porque daqui a
um tempo, quando eu não estiver mais aqui, os meus serão sempre atuais. Porque
o tema desemprego é bem atual. Desemprego existirá por toda a vida, porque isso
é uma coisa difícil de superar. Os americanos fizeram milhões de filmes sobre a
guerra do Japão (você nem tinha nascido), mas são todos lixo, não têm valor. Os
meus não são modistas. “A Febre Nossa de Cada Dia” retrata a vida de dois
jovens que vivem numa cidade marcada pela insegurança, o medo, os assaltantes.
São classe média, embora hoje não se saiba se essa classe ainda existe. Tem um
filme que fala sobre o drama do menor abandonado, também filmado aqui em Belo Horizonte. É
um fenômeno que existe em toda parte, e é difícil de ser solucionado.
Qual o recado o senhor dá para quem
quer seguir os caminhos do cinema?
Eu acho que
fazer cinema é muito difícil. A arte e a cultura em geral aqui no Brasil são
muito difíceis. Outro dia um jornal me deu um slogan: “Aron, o cineasta
teimoso”, “Aron, o cinema do milagre”. Pois para fazer cinema no Brasil precisa
ser cabeçudo. É muito difícil, eu faço cinema independente, eu produzo. Às
vezes deixo de comprar sapatos, camisas e junto dinheiro para comprar uma fita.
É tudo por amor à arte. Já vou lançar mais um filme, “Estranhas criaturas”, de
um conto do Carlos Herculano Lopes, um contista mineiro que adaptei e
desenvolvi. Está pronto. Modéstia à parte, está genial, com os melhores atores
de Belo Horizonte e estou aguardando o lançamento. Com esse plano Collor, que
saqueou todo mundo, ninguém tem dinheiro. As empresas não têm dinheiro nem para
pagar seus funcionários. E a arte então? Não tem mais a Lei Sarney, não tem
mais Embrafilme... acabou tudo. Está difícil, mas acho que logo este meu novo
filme será exibido (previsto para de 02 de junho de 1990, no Palácio das
Artes). Não digo o último, pois enquanto estiver de pé continuarei fazendo
cinema (risos).
Aron Feldman
(1919-1993) é tido como um realizador dos mais influentes, mas de carreira
totalmente subterrânea. Autor do polêmico “O Mundo de Anônimo Jr.” (1972),
longa-metragem que integra o ciclo denominado Cinema Marginal e é considerado
pelos estudiosos como um dos mais radicais dessa escola. Feldman viu negado o seu certificado de
exibição pelo Instituto Nacional do Cinema, o que impediu sua exibição nos
cinemas. O filme, que satiriza simbolicamente uma época de repressão e
obscurantismo, foi projetado exclusivamente em cineclubes e cinematecas, muitas
vezes clandestinamente, e encontra-se há anos fora de circulação. Em texto de
1974, o crítico e historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977)
afirma: “O que impressiona no comportamento dos comissários governamentais é o desconhecimento
que revelaram em matéria específica de cinema brasileiro e mais geralmente em
torno de cultura nacional e seus diferentes matizes.” Dirigiu 11 filmes e
vídeos que destacam sua versatilidade e, principalmente, sua filosofia de
criação: fazer com os recursos e condições disponíveis, por mais restritos que
fossem.
Filmografia
CASQUEIRO – 16mm, p/b, 16 minutos,
1966
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente:
Claudio Feldman
Cooperação:
José Armando Pereira da Silva
Distribuição:
Dinafilmes
Sinopse:
Crianças vendedoras às margens da Via Anchieta.
A FEBRE NOSSA DE CADA DIA – 16mm,
p/b, 49 minutos, 1968
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente:
Claudio Feldman
Roteiro:
Aron e Claudio Feldman
Elenco:
Cleide Dall’Ollio, Ari de Oliveira, Celsinho e Soraia, Célia Bittencourt, Oslei
Delamo, Sônia Gimenes, Evaristo de Jesus e Gilberto Castilho.
Distribuição:
Dinafilmes
O MUNDO DE ANÔNIMO JR. - 35mm, p/b, 90
minutos, 1972
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Assistente e
roteiro: Claudio Feldman
Músicas: Fred
Zimmermann e Flávio Siqueira
Elenco:
Claudio Feldman , Cila Albuquerque, Oslei Delamo , Ângela Peduto, Sônia Guedes,
José Henrique de Paiva Lisboa, Carlos Rivani, Jaime da Costa Patrão
Estúdio de
gravação, montagem e laboratório: Primo Carbonari
Distribuição:
Dinafilmes
MANGUE E METRô - 16mm, p/b, 10 minutos, 1976 (filmado no Rio de Janeiro)
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Arte:
Mirelli Lerner
Assistentes:
Roberto Peckman, Abram Gotlib, Isaac Levi e Felipe Doctors
Sinopse: Acompanha
a desocupação da região do Mangue carioca para a construção do metrô
JÁ NÃO SE FAZEM ALMAS COMO
ANTIGAMENTE - 16mm, cor, 20 minutos, 1981
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro:
Claudio Feldman
Música: Getúlio
Braga
Gravação: Adelmo Vanuchi
Abertura e
desenhos: Mirelli Lerner
Cartazes:
Moacir Torres
Colaboração:
Claudio Feldman, Edmundo Lima e Fani Feldman
Elenco:
Edson de Deus, Valdeni de Carvalho, Sergio Feldman, Neide F. Oliveira, Sergio
Luiz F. Soler, Valeria Feldman e Ida Feldman.
Distribuição:
Dinafilmes
O PACOTE - 16mm,
p/b, 27 minutos, 1982
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Argumento:
Claudio Feldman
Adaptação:
Aron Feldman
Música:
Elmano Nunes Jr. (Maninho)
Elenco:
Wilson Damas e Gê Garcia
Distribuição:
Dinafilmes
Sinopse: O
filme aborda o desemprego na região do ABC paulista.
MARIANA, PARANÁ E GREVE – super 8mm,
cor, 36 minutos, 1984
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Baseado no
conto “Os conselhos”, de Roberto Franco
Adaptação:
Aron Feldman
Elenco:
Marli Aparecida Ferreira da Silva, Adélio Oliveira, Agenor Alberto Pereira
Chagas, Ariel Moche, Cristine Del’acqua, Eliane Freitas Trevigno, Marlene,
Geovan Sabino, Manoel de Araújo, Maria Aparecida Noberto, Maria Aparecida
Viotto, Nelson Paiva, Wanderlei A. de Souza, Manoel de Araújo, Mirelli Lerner e
Ida Feldman.
VOU SER LADRÃO - super
8mm, cor, 20 minutos, 1985
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Entrevistas
e narração: Ida Feldman.
FINITO OU INFINITO - super
8mm, cor, 20 minutos, 1986
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro:
Aron Feldman
Elenco:
Helvécio Ferreira, João Augusto do Carmo, Ana Aguinala, Lana Carneiro e Nelaide
Abdo.
Assistente
de direção: Fabio Carvalho
Iluminação:
Tárcio Martins
A ODISSEIA DE UM CADÁVER - VHS,
cor, 70 minutos, 1988
Direção,
produção, fotografia, montagem, som: Aron Feldman
Roteiro:
Claudio Feldman
Sinopse: Um
cadáver feminino é achado no mato por dois caipiras e conduzido à distante
delegacia, após mil peripécias.
ESTRANHAS CRIATURAS – 1990*
Uma
prostituta jovem é informada por veterana que bichinhos vorazes a estão
consumindo e o mesmo poderá ocorrer com a novata quando envelhecer.
Aron Feldman
pode ser visto nesse videoclipe da banda mineira Divergencia Socialista feito
pela cineasta Patrícia Moran.
*(os dois
últimos filmes não foram encontrados dados quanto ao formato, duração)
lindo! mágico. muito obrigada por isso.
ResponderExcluirbjo
Que bom que gostou Ida. Fico muito feliz
ResponderExcluirMassa!
ResponderExcluirmto massa! existe alguma cópia de algum desses filmes?
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