Por Pedro César Cupertino e Silva
Sávio Leite é, sem dúvidas, uma figura icônica no cenário de animação nacional, com um jeito despojado ao falar sobre seu próprio trabalho e até cômico, quando vez ou outra pede desculpas por exibir alguns filmes que o mesmo julga como ruins. Sem escrúpulos ao falar sobre suas temáticas e técnicas, Sávio explora caminhos na animação que poucos se permitem trilhar, sua paixão pelo experimentalismo é contagiante, selvagem, violenta e nos arranca da zona de conforto como um potente soco na cara.
Antes de assistir a mostra de seus filmes no auditório da Belas Artes, eu não o conhecia, mas esperava algo comum ou comercial de algum veterano na animação convidado pelo professor Pedro Aspahan. Não foi o caso. Fui apresentado a filmes toscos, undergrounds e completamente pirados e esquisitos. Sou um grande fã de coisas esquisitas, então eu fui fisgado pelo trabalho do Sávio e aquilo me inspirou o tempo todo enquanto eu assistia a seus filmes.
Me impressionou muito a diversidade de técnicas de animação utilizadas nos filmes do Sávio, desde animação 2D tradicional, stop motion e até rotoscopia feita de maneira digital. Quase sempre eram obras não-narrativas e inspiradas em mitos gregos e literatura erótica, temáticas pouco abordadas no campo da animação que, infelizmente, ainda é vista como uma coisa para crianças.
O primeiro filme que me chamou atenção foi Terra, de 2008, com uma animação tradicional feita com lápis de cor em cima de colagens e papéis sujos e borrados. Trazendo o forte texto do Sérgio Fantini, a obra apresenta diversas cenas do cotidiano das mais variadas formas, explorando o surrealismo através da animação e trazendo ideias sobre as diferentes vivências do povo a partir da luta de classes. A visão anticapitalista transborda para todos os aspectos do filme, fazendo uma síntese incrível entre forma e conteúdo.
O segundo filme, Vênus: Filó a fadinha lesbica, foi criado por meio da técnica de rotoscopia digital através de gifs pornográficos encontrados na internet. Esse é um dos que mais me impressiona, se baseando no texto erótico da Hilda Hilst e criando imagens selvagens que expressam muita rebeldia contra uma sociedade conservadora. O filme conta com algumas cenas que se repetem no decorrer do texto interpretado, junto ao vermelho forte que brilha na tela e traz uma sensação de incômodo e ao mesmo tempo, hipnose, tirando o espectador de sua zona de conforto e o atraindo para essa psicodelia como se experimentasse algum chá psicotrópico.
Após a exibição eu cumprimentei o Sávio, que de forma muito simpática, ouviu meus comentários e confirmou minhas impressões sobre o filme Vênus. Eu vi muita inspiração nas obras de Georges Bataille e como o filme usa o erotismo e a transgressão do sagrado, quebrando tabus sobre sexo, gênero e comportamentos para passar sua mensagem. Também disse que a personagem do filme parece fazer parte do gênero futanari¹, mas como a linguagem da animação trazia consigo mesma elementos mais sujos e grotescos, através da narração e das ilustrações, também me lembram vagamente dos quadrinhos eróticos e grotescos do autor japonês Suehiro Maruo.
A paixão de Sávio, quase sempre incompreendida, pelo tosco, é muitas vezes mal vista e não entendida por críticos e espectadores, principalmente por conservadores, que estão acostumados com um cinema puramente de entretenimento, muitas vezes adorado por uma espécie de “culto a técnica” e fetichização da qualidade gráfica das imagens. Mas Sávio não está interessado em trazer em seus filmes narrativas clássicas e uma linguagem comum, nem mesmo trabalhar com animação publicitária, pois segundo ele, sua gana pelo que é diferente e inovador só pode ser saciada na margem do cinema tradicional, no underground, no tosco.
[...] A resolução foi fetichizada a ponto de sua ausência equivaler à castração do autor. O culto da bitola, no cinema, dominou até mesmo as produções de filmes independentes. A imagem boa estabeleceu seu próprio conjunto de hierarquias, com as novas tecnologias oferecendo mais e mais possibilidades de degradá-la criativamente.”
Hito
Steyerl, Em defesa da imagem ruim, p.185.
O cineasta cubano Júlio García Espinosa dizia que: “um cinema perfeito — técnica e artisticamente bem-sucedido -- é quase sempre um cinema reacionário”. ² Sávio parece seguir o conceito de filme imperfeito de Espinosa, fugindo das convenções e normas do cinema comercial estabelecido radicalmente pelo conceito neoliberal de cultura como mercadoria, o artista nega o uso de artifícios e técnicas sofisticadas, sem compromisso com o perfeito, criando imagens imperfeitas e grotescas. Criando um cinema de animação popular, rebelde e revolucionário, diminuindo as diferenças entre autor e público.
¹ Futanari é uma palavra composta traduzida literalmente para "duas formas" e com o significado de hermafrodita em japonês, utilizada para designar pessoas intersexo e, num sentido mais abrangente, andróginas ou altersexo. Além do Japão, o termo é usado para descrever um gênero pornográfico comum de eroge, mangá e anime, que inclui personagens que mostram as duas principais características sexuais.Futanari, Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Futanari
²
Valeu Sávio, felizão que você curtiu o texto!
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