sexta-feira, 19 de junho de 2009

Metamorfose e Risco no Cinema de Sávio Leite

Metamorfose e Risco no cinema de Sávio Leite
Por José Ricardo da C. M. Junior

“O Homem comum é um monstro, um perigoso delinqüente; conformista, colonialista, racista, escravagista!” as palavras de Orson Welles no segmento “A Ricota” dirigido por Pasolini no filme coletivo RoGoPa, guarda semelhanças com o trabalho de Sávio Leite.

Para Sávio Leite parece existir algo de monstruoso na mediocridade. O homem médio se transmuta em animal e o animal se torna humano. É um trabalho altamente sexual, mas não sensual, outra conexão com Pasolini. A metamorfose da qual falo vem do interior dos seres e se expressa no exterior. Ou seja, o grande elemento moldador do indivíduo é seu grau de desespero ou isolamento perante o seu meio social. A monstruosidade e deformações, como no curta metragem “Terra” advém do monstro interno se expressando fisicamente através das linhas.

Neste sentido, o cinema de Sávio Leite possui algo de brutal e melancólico; como se tentasse observar o mundo e exibi-lo como este realmente é por baixo de sua aparência asséptica, mesmo que para isso tenha que abrir mão do “realismo” do traço na animação. Seus filmes parecem buscar por um equilíbrio impossível no universo que se apresenta na tela.

Por linhas, assumo a idéia de traço, aquilo que delimita, controla, organiza.

Uma influência muito marcante em filmes como “Terra” pela fluência das linhas com as quais o diretor trabalha é Emile Cohl. As linhas parecem ter vida, são livres, não busca pelo realismo, mas pelo real por trás do irreal, como se em seus desenhos houvesse algo a ser descoberto. Por não buscar realismo tem-se a abertura para possibilidade de metamorfoses. Este tipo de animação se distingue bastante da chamada animação clássica, da qual um grande nome seria Walt Disney.

Ao contrário do estilo clássico, a linha, organizadora de informação, está no cinema do diretor Sávio Leite, organizando para desorganizar. Em Emile Cohl, vemos mutações de linha que se organizavam, se mutavam para se reorganizar, construindo assim um discurso sobre as possibilidades da animação. Esta idéia persevera em Sávio Leite, a linha em Sávio é a metamorfose. Porém quando esta linha se organiza em imagens compreensíveis na tela, temos uma informação brutal, que de certa forma desorganiza conceitos sociais. Ou seja, através da linha se cria metamorfoses na tela, metamorfoses que deveriam organizar o mundo de forma lógica. Mas o mundo, ao olhar de Sávio Leite, é tão caótico, que ao organizar a linha, um período de transição, se desequilibra ainda mais o espectador.

O fetiche que hoje vemos na animação de formas cada vez mais próximas do real, tentando representar a figura humana de forma mais precisa, perde possibilidades de se criar um universo que representa a existência humana de forma muito mais poderosa, através da força poética da mutação. Mutação constante ininterrupta, o caos de existir. O que estava aqui a um momento atrás e que deixa de ser para se tornar outro. A linha como metamorfose é a própria poesia, pois se torna orgânica é um ser vivo pulsante na tela. O assunto não é apenas o que a linha delimita, mas a própria linha e seus movimentos.

Assim, a questão que se torna óbvia no cinema de Sávio Leite, é de que as linhas delimitadoras, sejam estas sociais, culturais ou humanas são prisões tentando enquadrar todos em seus limites e que apenas através da mutação algo de livre ou libertário pode ser alcançado. Assim, se representa a monstruosidade nas ações humanas, esta, em constante transformação e movimento.

O diretor parece afirmar em sua obra que o olhar humano sobre determinada realidade é desorganizador, pois assim se enxerga a verdadeira natureza de um ser. No curta metragem “Cave, cave Deus Videt”, Sávio Leite nos apresenta uma visão pertubadora de um mundo frio, altamente sexual. Um universo que parece atestar a loucura da existência humana. Neste filme temos a mesma estrutura de se organizar para desorganizar. A câmera passeia pelas linhas do quadro e quando a informação das linhas se faz decodificável, o horror ou a bestialidade da cena cria um desequilíbrio. Como se ao organizar aquela informação, por sua natureza caótica percebêssemos como o mundo é opressivo para aqueles que não se enquadram, e que tentam desesperadamente se enquadrar. Assim, esta obra fala de todos e de ninguém.

O cineasta parece afirmar que há monstruosidade humana esta dentro das linhas. Assim, a linha como agente delimitador de espaços é subvertida pois não consegue alcançar seu princípio básico – o equilíbrio. O interesse aqui não é o equilíbrio, mas exatamente o desequilíbrio. O instante quase mágico de criação no qual a recompensa é o choque.

Já em “Eu sou como o polvo” as primeiras referências que vem à mente são as primeiras obras de Stuart Blacktown e “O Segredo de Picasso” de Henri-Georges Clouzot . O princípio formador da arte é o que fascina. Observar a criação no instante em que esta ocorre. Quase um número de mágica, algo que não existia assume forma e passa a existir. Em “Eu Sou como o Polvo”, vemos a construção de personagem e autor, as influencias se traduzindo em traços.

Curiosamente os autores que Sávio busca retratar parecem ter uma visão de mundo alinhada com a do próprio autor. O desequilíbrio das transformações em um mundo que se metamorfoseia a todo instante engolindo tudo e todos e se alimentando da fragilidade humana, se sustenta.

O principio básico da monstruosidade em Sávio Leite é o humano, o comum e o medíocre, o estagnado. Ao ver obras como Mirmidões temos esta clara noção.

A estética marginal também é muito presente em “Terra” que parece ter saído do caderno escolar de um adolescente durante a aula fazendo desenhos eróticos e caricaturas. Isto amplifica a sensação de isolamento. O autor e público estão ilhados em um universo particular e altamente dramático.

Outra característica que merece menção é a fúria dos traços. No filme já mencionado, “Cave, Cave...”, as obras muitas vezes são riscadas como um artista que criou um universo, e depois, tenta negá-lo. Uma sociedade que produz imagens como estas tem algo de patológica, e através disso podemos observar as contradições internas e a monstruosidade de um mundo gerador do ódio. Um universo que rejeita o outsider, o loser, aquele que não encontra lugar em um mundo que parou de se preocupar com os fracos.

Assim talvez, por isto o homem médio seja o monstro neste cinema, pois este tenta desesperadamente se enquadrar nos limites impostos, e almejar subir na vida dentro das linhas, sendo cuidadoso o suficiente para nunca cruzá-las.

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